domingo, abril 26

como uma fatia de bolo

Ela estaciona o carro desnecessariamente distante do mercado.
Desce no meio da chuva fina com sacola e lista de compras nas mãos. Não se importa, precisa respirar aquele ar de grama molhada e pensar um pouco.

Começa a espera, que vai se renovar a cada despedida. Ela sabe disso. Esperava por isso. E continua esperando.

Mas não tem melancolia no seu olhar.
Ela passa os olhos pela receita que tem nas mãos. Uma fatia de bolo depende de todos aqueles ingredientes. Depende das mãos dela, do carinho que põe ao misturar cada iten, depende da sua habilidade, da batedeira, do calor do forno.

Depende da sua atenção, de que ela não esqueça no fogão.
Depende das vasilhas, da forma bem untada, do ponto da manteiga, do frescor da maçã e da validade da levedura.

Depende, principalmente, do tempo dela. Tempo para sair, comprar, voltar, preparar, esperar, cortar e enfim, finalmente o enfim, comer.

Uma só fatia de bolo e tantos minutos dependendo dela.

E não é assim a vida? Um eterno preparar-se para uma espera cujo objeto será consumido? Tantos melhores poetas já trataram da efemeridade do instante, da vida, do saborear-se. E que vou eu elocubrar?

Espero.

Sei que espero e sei pelo que espero.
Mas não me arranque tudo isso de uma vez.
Não me obrigue a perder algum detalhe, algum componente da receita.

A fatia de bolo deliciosa precisa de cada ingrediente, de cada etapa e de todos os minutos consumidos...



Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento.
CLARICE LISPECTOR

Um comentário:

Antônio Padilha disse...

É verdade mesmo. Para aquela fatia de bolo precisamos de todos ingredientes, todo tempo e também muita entrega. Mas não sei se sou bom de bolo, sabe? Talvez eu não combine com essa história de espera impotente enquanto o doce não sai do forno. O resultado só veremos depois, quando não podemos mais interferir. Apesar de reconhecer a magia dessa idéia, minhas melhores histórias pra contar são daquelas receitas em que você vai experimentando e melhorando, desde os ingredientes frescos até as etapas finais.

Nota: a verdade é que agora estou meio confuso. Pois ontem cozinhamos um bolo de milho que voltou para o forno várias vezes, passando pelos estágios pudim, pamonha, pão de batata e doce da vó da Thaís. Talvez nenhum prato tenha seu destino traçado. Talvez possamos mesmo interferir em tudo.