quarta-feira, março 14

Conto da maçã

"Quando perguntaram a Joaninha o que é que ela queria ser quando fosse grande (há sempre um dia em que um adulto nos faz essa pergunta), ela não hesitou:

- Quando for grande quero ser maçã!

Disse aquilo com tanta convicção que a mãe se assustou:

- Maçã?

A maior parte das crianças quer ser: a) astronauta; b) médica/o; c) corredor de automóveis; d) futebolista; e) cantor/a; f) presidente. Há algumas respostas mais originais: "Quero ser solteiro", confessou o filho de uma amiga minha. Conheço uma menininha que foi ainda mais ambiciosa:

- Quando for grande quero ser feliz.

Mas maçã? Joaninha, meu amor, maçã porquê? A pequena encolheu os ombros: "são tão lindas". Passaram-se os anos e a mãe pensou que ela se tinha esquecido daquilo. Mas não. No dia em que entrou para a escola, a professora fez a todos os meninos a mesma pergunta:

- Ora então vamos lá saber o que é que vocês querem ser quando forem grandes...
Astronauta. Piloto de Fórmula 1. Cantora. Futebolista. Barbie (há muitas meninas que querem ser a Barbie). Médica. Modelo. Actriz. E tu, Joaninha?

- Eu quero ser maçã!

Risos. Os outros meninos começaram a fazer troça dela:

- Maçã raineta! Maçã raineta!...

- Se a Joaninha pode ser uma maçã, senhora professora, eu quero ser um avião...

Ela nem fazia caso. Quando crescesse havia de ser uma maçã, sim, uma maçã verde, luminosa, tão perfumada como uma manhã de Primavera.
Poucas vezes, porém, conseguimos cumprir os nossos sonhos. Joaninha transformou-se numa mulher bonita, estudou, e fez-se professora. Era uma boa professora. Só quem conseguisse olhar para dentro dela poderia saber que, bem lá no fundo do seu coração, Joaninha sentia ainda aquela grande vontade de se tornar maçã. O tempo passou - o tempo, aliás, está sempre a passar, nós é que nem sempre damos pela sua passagem. O tempo passou, portanto, e Joaninha envelheceu. Não casara, não tinha filhos, envelheceu sozinha.
Foi numa tarde de Outono. As árvores tinham perdido as folhas. O sol, cansado, com aquela cor macia que tem o mel, desaparecia no horizonte. Joaninha estava a dormir, sentada numa cadeira de baloiço. na varanda da sua casa, quando apareceu um anjo e a levou.

Joaninha abriu os olhos e viu o que já antes via com os olhos fechados: os anjos passeando num grande jardim, os peixes flutuando no ar, juntamente com os pássaros, e aquele velho de barbas brancas, ao seu lado, sorrindo como só Deus sabes sorrir.

- Meu Deus - perguntou-lhe - porque não me deixaste ser maçã?

- Ser maçã é difícil, Joaninha - disse-lhe Deus. É preciso crescer muito para se ser uma boa maçã. Tu cresceste. Agora, sim, serás maçã.

Alguns anos depois, um menino descobriu no pomar da casa dos seus avós uma maçã de um brilho intenso. Cheirou-a: cheirava a manhãs lavadas, cheirava a Primavera, era um cheiro que se colava aos dedos. O menino comeu a maçã e sentiu-se feliz. Naquela tarde disse à avó:

- Sabes, acho que quando for grande quero ser maçã!"
Um conto do português/angolano: José Eduardo Agualusa.

segunda-feira, março 12

Devagar é que se entende...

Não sei o porquê, mas é comum, ao "estarmos" estrangeiros em países de línguas que desconhecemos, falarmos mais dee-vaa-gaaariinho, abrindo bem a boca, como se isso fosse dotar automaticamente o nativo de um tradutor portátil (e invisível) que conseguisse nos decifrar.

Depois da dispensável introdução, que tira a graça da historinha, ei-la:

Mãe de 4 filhos, viúva, 57 anos decide ir para a Alemanha. Vai visitar o primogênito, mas prefere ficar em hotel para evitar conflitos com a nora bagunçenta (bem que nesse aspecto ela queria que Helga parecesse mais germânica).

Passa o primeiro dia muito bem obrigada no hotel. Café, leite e pães são uma linguagem universal no café da manhã.

No terceiro e último dia, faltava sua camisola. O costume de deixá-la, dobrada, debaixo do travesseiro deve ter sido a causa do sumiço.

Nesse mesmo instante, entra a camareira, com ares de atrasada. Leva um susto ao perceber a velhinha enxuta ainda em seu quarto. A hóspede pensa, um pouco medrosa: o diálogo -- em alemão??socorro! -- vai ter de acontecer. Em inglês, não. Eu não vou falar essa língua ignóbil.

Então, vira-se para a moçoila e diz:

-- Vooo-cê por aaca-so nããão viu um-ma ca-mi-so-li-nha por a-quii?

Mal havia terminado de falar e a camareira pôs-se a inundar os olhos.
A viúva viajante não entendeu nada.

E repetiu:

-- Nããão choo-rees. Nãão voouu fii-caar braa-va. Só proo-cu-ro uma ca-mi-so-li-nha. De dor-mir (fez o gesto com as mãos em palma ao lado da bochecha direita), voo-cê viu (apontou os olhos)?

A menina chorava copiosamente. Mas levantou a mão. Fez que ia falar.
Não conseguia.

Resolveu esperar, com um sorriso leve, meio desconcertada.

-- É que eu (shhhgllt) sou brasileira. Bra-si-leeei-ra. Faz muito tempo que (...) não ouço o Português.

quinta-feira, março 8

uma maçã

é uma delícia!

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Alguém sabe qual é a historinha que marcou a maçã como ícone para presente das professorinhas de plantão?

Me conta, vai !

a escritora- parte I

Então, ela abriu o caderno e pôs-se a escrever.
Mesmo que já não pudesse mais lhe contar, ela precisava daquilo.
Na mesa, as pontas do cigarro que caíam do cinzeiro, seus anéis e pulseiras se misturavam com os papéis e sua máquina de escrever.
Ela gostava daquele barulho.

Parecia-lhe que toda a sua turbulência saia-lhe da cabeça naquele tectectec.

As horas passaram lentamente.
Outra vez, pensou, outra vez.

E as palavras lhe faziam greve. Outra vez.

quarta-feira, março 7

Alguém, neste instante, em algum lugar...

-- Acorda atrasado pois o relógio não tocou (ou ele não ouviu);

-- Pede um caffélate numa loja da Starbucks - que vai ser derramado antes de entrar no metrô;

-- Atende o celular no meio da sala de aula;

-- Prende a respiração para aprender a mergulhar, antes de se aventurar a mais de pés debaixo do oceano pacífico;

-- Decide que chegou a hora de fazer uma dieta;

-- Sai para a rua para dirigir, indo para um lugar desconhecido;

-- Comenta com a colega que o sapato está apertado

-- Acaba de perder o ônibus da escola;

-- Deixa cair o MP3 player na rua sem perceber;

-- Corta o cabelo de uma cliente que acabou de terminar o namoro;

-- Tira as lentes de contato por causa de uma alergia;

-- Está escovando os dentes depois do almoço, mas não passa fio dental;

-- Pensa que a vida não vale a pena;

-- Corre no parque da cidade, desviando de um cachorro perdido;

-- Atravessa a Av Paulista para um almoço de negócios;

-- Vê um filme muito chato, para se arrepender depois;

-- Toma um sorvete gelado para aliviar o calor;

-- Toma um chá de framboesa para ler um livro e esquecer dos - 25ºC que fazem lá fora;

-- Salta de pára-quedas pela primeira vez;

-- Não está olhando para uma tela de computador;

-- Descobre uma doença grave;

-- Recebe a notícia de uma promoção;

-- Começa a escrever uma receita para um paciente sem olhar-lhe nos olhos;

-- Reza pacificamente numa igreja;

-- Ora, cheio de dor, em um velório;

-- Bebe outro copo de água antes de fazer uma endoscopia;

-- Apara a grama do quintal;

-- Compra uma jaqueta jeans na Gap;

-- Usa filtro solar para sair na rua;

-- Prega um outdoor sobre óculos de sol;

-- Põe o boné para continuar a colher as jaboticabas;

-- Rega as plantas de seu jardim de inverno;

-- Recolhe o lixo de toda uma vizinhança;

-- Dirige um caminhão que vai buscar carnes em um frigorífico;

-- Desliza numa piscina, treinando para o PAN;

-- Fotografa um político que está dando uma entrevista;

-- Adianta o jantar para receber os amigos em comemoração à sua formatura;

-- Lê a página 39 do Harry Potter e a Ordem da Fênix ...