sexta-feira, junho 3

Resgate do Recheio

Mudar essa parte da vida nunca deu muita graça. Andar descalça foi mais legal, mas o que é o pé no chão?
Sentados, aqui vamos procurar outro lugar. Quem esteve presente quer voltar. Quem não apareceu nem vai se arrepender. Eis que surge o juiz: quem corre? quem foge? quem fica estático?

Estamos nós três a relembrar o fato: biscoitos recheados. Sim, quem mandou ela comprar e esconder? Era o verdadeiro convite, o proibido torna-se mais importante do que aquilo que já se tem.

Eu lembro da hora em que chegaram as compras, vi a cor do pacote! Uma súbita alegria. POSSE. Mordida, crunch, crunch, crunch. Ai, mãenhê deixa abrir?

A negativa foi o momento em que começou o motim. Vamos! E a caçula sempre tem o receio. Mas isso não é certo, mamãe nem deixou. A nossa disposição é de soldados em guerra, essa pequena nem esteve no alcance. Juntamos, então a velha idéia. A gente espera e ataca!

Porque a aventura simples de criança sempre parece a MELHOR do mundo? E o biscoito de chocolate, que nem era o mais gostoso vira o alvo, ouro, diversão. Ainda quisera saber achar esta simplicidade em divertir-me, aventurar-me das coisas simples nesta vida que muda mas que continua criança.

Mas voltemos ao tribunal: ele tinha de deixar as cascas do biscoito e comer só recheio? Não sabia que não era para deixar rastros? Que raiva. Raiva, mais raiva. Só não era mais raiva dele porque tinha o medo do que ia sair da boca e das mãos do pai. Nem sabe executar o plano, e vai só como a culpa vai em mim, na mais velha!

E agora, tinha de responder o porquê. Como porquê? Biscoito é biscoito, ora bolas.

A audácia de contrariar a lei muda com o medo da retaliação. O que antes era certeza agora é questionado: e precisava exagerar tanto? E não é assim na vida de adulto? As certezas parecem depois tão furadas ou vazias... Como biscoito de recheado chocolate sem o recheio. E sem culpa da Parmalat.

Não cai a culpa no esquadrão de busca e operações especiais: como vocês encontraram o biscoito??
Procuramos taticamente, silenciosamente, com toda a perícia e silêncio possíveis. Missão de resgate: o que é bom não pode ficar escondido.

Os adultos perdem então a graça. Só vale o que já é convencional. Mas quem garante que esse é o certo? Quem? Agora o tribunal já cessa, e quem tem perguntas somos nós.

Castigo? Eu não quero castigo, prefiro umas bolachas.

Quem mandou falar? Agora voam as Havaianas!

Melhor opinar se e somente se é pedido e quanto antes andar com mais cautela. Mesmo que ainda seja mais legal andar descalça, ainda prefiro as havaianas no pé. E como soluciono: ser quadradinha sem querer ser certinha, ser audaz e prudente? Nem esta louca crônica responde?

A solução pode vir. Mas, antes, preciso de biscoito recheado.

quarta-feira, abril 13

Neto é filho com açúcar

Quero lembrar hoje uma daquelas últimas frases do próprio estilo Darcy de expressar o mundo: "Neto é filho com açúcar." (acho que por isso ela sempre foi gordinha - pelo menos desde que nasci!)

Minha vó nem era só minha, mas a gente [os netos] sempre gritava bem alto:
"a minha vó me de-eu" para ver quem reagia: só sua não ou então "vóóó, eu também queroo".

A verdade é que era. Minha vó era só minha. Todos tínhamos essa certeza. Não só porque ela nos remetia ao ideal esperado de uma avó: abraços, presentes fora de hora, o melhor arroz do mundo e a incrível ceia de Natal. Historinhas para contar, orações a ensinar, palpites prontos para dar. Não era por isso. A vovó era minha e de todos nós.

Cada um que a tinha perto de si via assim: parte sua.
Não que brigávamos por exclusividade. Vovó é que nos soube tornar únicos na vida dela. Parecia que seu coração queria aprender a pulsar no ritmo de cada um. Eu bem sei que ela gostava do meu ritmo coração-escola-de-samba, do coração-Chico da mamãe, do RitaLee da Érica.

Assim ela passou: uma MINHA para cada um: minha filha, irmã, mãe, vizinha, amiga, vó e bem (aí, sim, único caso que o gênero do possessivo muda: meu bem).

Eu digo minha porque o amor que tenho por ela ainda está aqui: vivo e único. Não consigo me ver como sou sem a intervenção dela. Quase tenho certeza que é assim para toda a família. Minha vó era referência, era essa pessoa que congregava todos os corações num só.

Nunca duvidamos disso, mas eu nunca tinha visto assim tão definido. E, agora, parece-me que faz todo o sentido do mundo que a tivéssemos como central de informações: ela sabia de todos porque amava a todos.

Ai de quem não ligava para ela!

E mais uma vez me repito: ela cuidava porque amava. E sofria porque amava. Não desistia dessa vida, suportava as dores porque nos amava.

A vó é minha, eu não abro mão desse possessivo, porque foi Deus mesmo quem quis que assim fosse. Mas esse amor individual não segregava. Essa mãe é minha, e sua, nossa. Sabemos como era completa a sua alegria se a reunião familiar tinha todos os corações presentes: o dela, com certeza, tocava concertos sinfônicos de amor e, claro, cantava também o caos que era alojar o povo inteiro nas festas e feriados.

Hoje, posso já antever vejo seu sorriso maroto e o brilho no olhar dela: de novo, juntos. Não quero desistir de ser com vocês família, porque a minha vó não perdeu tempo de nos deixar sempre unidos, com esse amor gordo, generoso, paciente, que se moldava ao jeito de cada um.

quinta-feira, março 10

sapato marrom

Voa sapato marrom
Para outro lugar distante

Fica em outra calçada
se esconde na mala
vai, se esquiva
a rastelar solado
a apertar o pedal

Voa sapato apertado
fica em outra vitrine
vai, se abre
a ajeitar outros dedos
a esconder outro pé

Voa sapato bandido
Aterrisa em outro chulé