quinta-feira, novembro 23

Corte, parcial

Ela sentou na cadeira e esperou ser "levantada". Deu aquele friozinho na barriga. Não, não vais mudar de idéia. Nem estás pensando nisto.

Ela se mexeu. Ele perguntou: Tá bom aqui?
Ela fez que sim com a cabeça enquanto esperava o moço simples colocar-lhe o avental. Passou outro segundo até que a cena do espelho lhe fez lembrar outra vez que (!)...
Não, já concordastes que não vais pensar outra vez nesta pessoa, que não vais permitir que mais um bobo acontecimento seja motivo de se desculpar em estares com a cabeça nestas lembranças. Já vais replicar: mas é que esse moço está com o perfume dele, mas é que da última vez que passei por aqui ele estava comigo, mas não é culpa minha, me ofereceram a revista para a qual ele escreve!

Ela resolveu colocar os fones no ouvido, talvez essa voz interna, masculina e repressora parasse. Nenhum playlist era neutro. Ou ele gostava ou ela gostava de ouvir com ele; ou ele havia lhe ensinado a apreciar ou ela havia copiado do CD original para ele também...

Quero outra trilha sonora. Agora, pensou.

Fones ao ar, o barulho que ficou foi o do ventilador e o da água que se derramava na cabeça dela. Ei, como vim parar aqui? Ai(!), por favor, pode trocar? Pode lavar meu cabelo com água fria mesmo.

A moçoila estranhou, mas seguiu o pedido.

De volta à cadeira.
Como vai ser o corte?

Que pergunta (suspiro fraco). Como vai ser a vida? Como vou acordar e continuar amanhã? Como vou jogar fora o que restou deste sentimento? O que vou fazer para tudo passar e passar sem fazer drama? E como vou juntar os pedaços? E o que é novamente, depois de mais madura, conviver com um coração em frangalhos?

Tantas outras perguntas mais importantes sem resposta que já guardava, que a moça não se perturbou em ficar com outra em branco: não sei o corte, disse. Quero uma novidade positiva, só isso, pensou.

Pode ser curto?
Pode mudar para valer?

Ela nem se alterou. Outra vez a eterna discussão. Ele sempre gostou do curto.
Você ia trocar a cor e não o tamanho. Vai parecer que fez para fazê-lo voltar. E você nunca gostou muito da idéia de cortar o cabelo tanto assim. Pode se arrepender duplamente.

Ela questionou a voz infame pela oitava vez no dia. Resolveu que venceria este duelo.

Vou cortar, disse ela.
Curto?

Aham.
Quer escolher o corte?

Faz o que quiser. Só não quero parecer Edward Mãos-de-Tesoura com essa minha cara branca e um cabelo sem jeito.
Ele riu.

Ela confiava no sujeito, fazia sete anos que deixava as madeixas naquele chão a cada trimestre. E ele conhecia bem a cliente: o que aconteceu com você, Vivian?

Na verdade, eu quero que aconteça algo, pensou.
E achou melhor ficar muda e esperar o visual aparecer.

Vinte e um minutos depois, ela pula da cadeira, voa para a porta discretamente.
A novidade não era agora o cabelo, ou a falta dele. Uma mensagem no celular mudava o foco da cena. Ela disfarça, olha o cabelo cuidadosamente no espelho.
Mas quer ver o lado de fora do salão. Será mesmo que me espera?

Ela paga correndo.

Sai e vê de longe as margaridas grandes nas mãos do rapaz, de costas, vestindo camiseta branca e jeans surrado.

Outro arrepio.
Não pode ser.

Você só poderia estar aqui.
Só não pensava que ia te encontrar ainda mais bonita.

Golpe baixo.
Baixíssimo.

Ela se vira para as margaridas.
Pensa no cabelo novo -- ele deve mesmo ter gostado -- e ao mesmo tempo onde está seu carro, quem falou para ele o endereço do salão, o número novo do celular dela, pensa que ele está mais magro, por onde ele andou nesses dois meses, como ele lembrou que ela adora margaridas, que a calça dele é aquela que ela deu de Natal no ano passado...
Pensa que não vai voltar assim fácil, que nem cortou o cabelo por causa dele, COMO vai disfarçar que o coração dela está batendo enlouquecidamente agora. Pensa no que vai falar, pensa se vai aceitar o buquê... pensa tudo ao mesmo tempo, em instantes de segundo e não fala nada, tonta em seus pensamentos.

Ele, calmo, ri do jeito dela, como costumava fazer, como quem já sabe o que passa na cabeça dela. E avisa:

Seu carro está do outro lado, Vivian.

Mas
Mas eu quero ficar aqui.

3 comentários:

Anônimo disse...

Primeiro comentário meu por aqui, Fer Cris!

Adorei e entendi todos os porques... =]

Bjux e saudades!

Anônimo disse...

Olás!!!Tava aguardando ansiosa por um post seu hehe...Pensar que cada momento da nossa vida pode ter uma trilha sonora..

Anônimo disse...

Engraçado como é difícil colocar um fim nas coisas, não é mesmo? Será porque gostamos de criar uma ilusão de permanência? Medo de mudanças? Ou será que o universo realmente gosta de continuidades? A roda da vida budista ou o dia do juízo cristão?

Não sei. Não gosto de finais, felizes ou não. Mas reconheço que deixar de andar para a frente só pode significar retroceder. E sei lá: existem mesmo segundas chances?